terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Os santos.

Os santos.

Foi numa mesa de um destes mil botequins que a história que contarei me foi narrada. Mais uma destas histórias de guerra que estamos acostumados a ouvir, mas que é sempre bom relembrar. Ou “renarrar”, tanto faz. Tentarei ser o mais fiel possível àquilo que meus ouvidos conseguiram captar depois de três doses duplas de whiskie 8 anos. “Bendita birita”; vamos ver se consigo. É a história de vida do avô de um professor meu. Lá vai:
Brasil, época da Primeira Guerra Mundial. A “Grande Guerra”. 1915, mais precisamente. Um jovem anarquista, filho de imigrantes italianos, tinha o curioso ofício de fogueteiro, ou seja, preparar fogos de artifício para datas festivas, etc. Muito bem: o que um anarquista fogueteiro, no início do século XX, poderia fazer com a arte que sabia dominar? Explodir coisas, óbvio. Eis que o tal camarada me explode um bonde no centro de São Paulo, ferindo várias pessoas, tendo que logo em seguida sair fugido do país. Para tanto, teve que se alistar no exército italiano, daqui mesmo, e partir para além mar. Era a única maneira de sair ileso do que havia feito. Imagine só: um anarquista tendo que servir o exército para salvar a própria pele. No mínimo curioso... Enfim, lá foi ele.
(Ah, antes que eu me esqueça - maldita birita!- : Por ser anarquista, e de quebra ateu inveterado, tinha o revoltoso hábito de quebrar os santos de porcelana da sua mãe, católica carola e fervorosa, que guardava todos os caquinhos dos santinhos destroçados pela ideologia do tresloucado filho - anarquistas de todo o mundo, uni-vos para quebrar estátuas!-).
Pois bem: a grande guerra foi “a guerra” de trincheiras, e nosso amigo ficou com a cabeça enfiada na lama por dois anos, em algum lugar no Vale do Pó. Entrincheirados, a vida desses homens que sobreviveram dentro de buracos por um motivo que, na maioria das vezes, lhes eram completamente alheios, era uma merda só, sendo impossível sabermos com precisão o que foi aquele tempo naquelas condições.
Seja como for, depois de ficar três dias sem dormir, bate-lhe um sono muito pesado, no exato momento em que as tropas inimigas estão avançando. Adormece, e enquanto as tropas avançam em direção à trincheira italiana, ele tem um sonho em que uma daquelas santas, cuja imagem havia quebrado, lhe aparece, dizendo para acordar e fugir o mais depressa possível, que sua vida dependia daquilo, imediatamente. No que ele abre os olhos, de fato avista o exército inimigo avançando, e de súbito se levanta e corre desesperadamente para salvar sua pele. Consegue, afinal, se salvar.
Terminada a guerra, regressa para o Brasil, “limpo” com a justiça brasileira, etc. e tal. Chegando em casa, a família o aguarda com festa, comida e bebida na mesa, essas coisas. Finda a celebração do reencontro, quando todos já tinham ido dormir, ele vai até o armário da sala. Procura, procura, até encontrar o que queria. Os sacos cujos cacos de todos aqueles santos estavam, separados pelos respectivos santinhos. Procura, procura, até encontrar aquela santa cuja vida lhe havia salvado na trincheira. Pega um tubo de cola, e começa imediatamente a colar os cacos e, como num mosaico, ele restitui-lhe o corpo, as vestes, a face precisa e exatamente igual à do seu sonho. Na verdade, colou todos os santinhos que havia quebrado outrora. Durante toda a sua vida, não houve uma noite sequer que não tenha tido pesadelos por conta dos seus anos na guerra.