terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Obrigado, Tarkovsky.

(Esta crônica faaz parte de um "amontanhado" de escritos que ando tentando organizar com o pícaro nome "Crônicas beneditinas", coisas que se passaram e que se passam na feira onde ganho meu peixe, todos os sábados. Lá vai).



Mais uma tarde, mais um sábado. “Lá vou eu de novo, brasileiro nato, se não morro eu mato...”, como diz a canção. Sentado, lendo uns quadrinhos do Adão Iturrusgarai, a sua Aline. Divertido, muito bom. Sempre acompanho seus quadrinhos na Folha. Certa vez o Laerte fez uma charge em que conforme um cara ia chegando até onde possamos visualizar seus dentes no último quadro, ia dizendo o seguinte, em forma de protesto: “Sou contra esse negócio de nome de rua levar o nome das pessoas (quadro 1); Imagine uma rua com o nome (quadro 2); ADÃO ITURRUSGARAI !!! (quadro 3). Genial, essa leva de cartunistas desta geração. Fazem quadros dentro de quadros, sacaneiam seus colegas e comparsas de profissão, arte dentro da arte. Uns dão a esse tipo de experiência o nome “metalinguagem”. Acho isso uma idiotice tamanha, “metalinguagem”. O espanto da “pós-modernidade”. UI, que vontade de inovar, meu Deus! Todos atrás da Eureka contemporânea. Que deprimente.
Eis que chega alguém para atrapalhar minha leitura, meu divertimento. Eram duas, mãe e filha. Sotaque do interior. Conheço muito bem, pois também vim de lá, mais do velho oeste, onde aquele típico sotaque forte não tem muito uso. Olham, olham, e a mais nova diz “uau, que da hora!”. Diz que têm “só filme alternativo”, e na hora me vêm à cabeça as placas das “Saídas Alternativas” espalhadas ao longo da Marginal Tietê. Digo boa tarde, que fiquem a vontade, e se tiverem alguma dúvida a respeito dos filmes que me perguntem. A mãe diz:
- Quanto é que tá os filmes?
No que eu digo os habituais “doze reais qualquer um, exceto os duplos, que custam vinte”. Ela faz um chupado com a boca, uma espécie de “uhm”, com um gruindo semelhante a alguém que anda sentindo ataques repentinos de gases. Olha para a filha, a filha olha para ela, as duas parecem perplexas, e eu volto para os quadrinhos, pensando em escrever logo-logo alguma crônica sobre uma mulher com ataques de gazes na minha banca. Riu, pensando que será divertido. Elas fuçam nas caixas dos filmes, e a filha acha algo. Que milagre:
- Olha, Pulp Fiction. Nossa, não acredito que têm isso aqui! Moço, quanto é que tá os filmes?
Tal mãe, tal filha.
- Doze reais qualquer um, inclusive este. Tenho outros filmes do Tarantino também, se você gosta dele.
Falei isso para sacanear, óbvio. Não, sacanear não: divertir-me. É mais justo assim.
- Nossa moço, que caro!
Nessa hora, a mãe repetiu o “caro” da filha, olhando para ela como quem diz “vamos embora daqui agora, esse cara é um sacana filho da puta que quer arrancar nossas vísceras fora e jogar para os cães, assim, de graça”. Não pensei nisso, mas a cena me pareceu tarantiniana por excelência. Bacana. Mas a filha logo em seguida soltou essa:
- Não, não, mas não é assim...rola um desconto, sempre...em banquinha de camelô sempre rola desconto, toda vez. Não é, moço? Você não faz um desconto pra gente?
Quase explodi na risada, olhando o populacho classe média interiorana com seu senso de menosprezo pelo trabalho dos outros, qualquer um que esteja abaixo de si mesmo (não tenho ojeriza a quem é do interior ou de qualquer região específica do mundo, só para ficar claro). Pensei que era justo fazer o que ela queria. Ela merecia, era uma alma digníssima.
- Rola sim, claro. Na verdade, todos os camelôs de São Paulo possuem um código de ética, de conduta acerca dessa questão. Eu, como sou da classe, estou fazendo o seguinte: se a pessoa levar alguns filmes específicos da minha barraquinha, leva um outro de brinde, além do habitual desconto. É uma forma de fazer o comércio girar mais, de fazer com que a produção cinematográfica não pare de produzir mais filmes, para eu poder construir minha casa própria mais rapidamente, inclusive.
Elas olhavam para mim entretidas, concentradas mesmo, abanando levemente a cabeça, como quem diz “sim, nós estamos de acordo”, mesmo sem terem ouvido todo o meu discurso:
- Sendo assim, estou fazendo o seguinte: levando esse filme, te faço dez reais e vocês ainda ganham um filme do Tarkovski, já ouviram falar?
As duas abanaram a cabeça dizendo que não, que nunca tinham ouvido falar do tal sujeito.
- Pois então – prossegui -, é um cineasta russo considerado pelos especialistas um dos dez maiores diretores de cinema do mundo, junto com o Tarantino, diretor desse filme que está na sua mão, que também integra a lista.
Elas olharam surpresas para mim, disseram que eu era muito inteligente, e que iriam sim levar o filme. Sugeri Stalker do Tarkovski, e elas pagaram os dez reais, agradecendo muito minha gentileza, prometendo que iriam voltar mais vezes, sempre quando viessem para São Paulo. Pagaram e foram embora. Fico imaginando as duas assistindo Stalker, com planos de quinze minutos filmados sem corte, um filme de três horas e pouco sendo exibido na casa duma família de classe média idiotizada pelo ingrato mundo que nos rodeia. Com certeza depois de meia hora de filme iriam jogar o DVD de lado e nunca mais iriam tocar nele. Fiquei idealizando isso, enquanto ria, lendo novamente meus quadrinhos.

3 comentários:

Unknown disse...

vc é incrível!
tenho saudades

Beatriz Provasi disse...

Gosto desse estilo arrogante! Muito bom! Beijos!

Unknown disse...

meu caríssimo franco,

qual não foi minha satisfação em perceber que este texto é aquele escrito numa soturna noite de outubro ou novembro do findo ano, entre vinho e cigarro!

agora resta-nos saber se esses textos dão livro. ou samba, quiçá.

beijo, nego