terça-feira, 15 de janeiro de 2008

A tal da física.

Lição para se guardar durante a vida toda. Vou contar um causo que me aconteceu há vários anos atrás, quando ainda estava no primeiro colegial. Uma pequena crônica, só para matar o tédio.
Tinha por volta de uns quinze anos, e pela primeira vez teria aulas de física no colégio. Até a quarta série, sempre tirei ou nove ou dez em matemática. Depois as coisas degringolaram um pouco. Mas aquele meu primeiro contato com a física foi de deslumbre. Pareceu-me um novo mundo, pois meu professor, além de fumar que nem um louco em sala de aula (na verdade era sempre na porta), me apresentou a física como algo lindo, sublime. As contas e estratagemas eram fantásticos, e o que mais me maravilhava e ao mesmo tempo desafiava, era o fato de que os problemas sempre me pareciam impossíveis, mas quando resolvidos (por ele, obviamente) eram a coisa mais banal e simples do mundo, além de belos, sempre. Era como se todas as respostas sempre estiveram ali, bem diante dos meus olhos, mas por alguma moléstia ocular do meu pensamento eu não conseguia enxergá-los.
O problema foi que, se no começo aquilo tudo se apresentou como um desafio, depois transformou-se numa angústia, até o ponto de se tornar algo parecido com raiva. Raiva de mim, do professor, dos alunos que também não compreendiam nada daquilo que aquele homem tentava nos ensinar, e nem queriam de verdade. Fui sentindo que sua didática e o modo como nos tratava no começo do semestre foi se modificando, até o ponto de demonstrar, muitas vezes, certo desdém por nós. O problema não era o próprio ato em si do desdém ou desprezo. A questão era que merecíamos sermos tratados daquela forma. Isso era o que mais me angustiava. Não quero parecer fascista dizendo isso, mas honestamente: foi a mais pura e bruta verdade. Merecíamos aquilo por não nos desafiarmos, não nos permitirmos ir além de piadas sem graça e a vontade de jogar bola nos intervalos das aulas. Já éramos adolescentes, e se não conseguíssemos nos abrir para uma coisa tão fantástica daquelas, e tentar transcendermo-nos de um colégio público da periferia de uma cidade do interior, para o que mais nos abriríamos? Estávamos fadados ao fracasso, isso me parecia nítido.
Mas por mais que eu tenha me esforçado no começo, levei o resto do semestre bem nas coxas, até chegar na penúltima semana de aula. O professor nos avisou que a haveria uma prova final, a única do semestre, e que toda a matéria dada ao longo daqueles últimos quatro meses cairia na tal prova. Vi o céu desabar sobre mim. Devo ter pensado que estaria ferrado, e no mínimo reprovaria. Dediquei-me a estudar a tal da física o resto da semana toda, e creio que não foi só para passar. Lembrei de um episódio do seriado “Anos Incríveis” (quem de vocês se lembram?), em que Kevin Arnold estuda como um louco para não reprovar em álgebra, e teve uma relação parecida com a que tive com Marcão (esse era o nome do meu professor), e no fim do exame ele entrega a prova para seu professor dizendo que ele nem deveria se dar ao trabalho de corrigir, pois o que estava sendo entregue era um dez. “Vou fazer igual, esfregar na cara dele que eu posso sim entender daquilo, que posso entender qualquer coisa”, pensei. Vou fazer igual. Ralei, ralei muito, estudei tudo o que meu cérebro pôde absorver de física naquela semana.
Eis que chega segunda de manhã, e me pego sentado na carteira, olhando a minha frente seis questões que, para mim, não distinguiam em nada do mandarim ou do grego arcaico, lexicalmente dizendo. Ele disse que quem terminasse o exame deveria ficar sentado na carteira, e que a sala só seria liberada quando soasse o sinal. Todos sairiam juntos.
O resultado da minha prova foi ótimo: consegui responder só a primeira questão. Pela metade. Mas como em física não existem questões respondidas pela metade (não estou falando de física quântica, e na verdade nem entendo disso nem quero discorrer sobre a exatidão das ciências exatas; deixo isso para os sociólogos ou para os filósofos contemporâneos), não levaria nem meio. Zero: este seria meu sobrenome em se tratando de física, para o resto da vida. Me matei para levar a primeira questão até a metade, e o fato de não poder sair correndo daquela sala naquele caloroso fim de novembro me esmagou o cérebro. Levei uma hora e meia para chegar até a metade daquela maldita questão (as outras eu nem fazia idéia de como começar), e se não conseguiria fazer toda a prova, pelo menos aquela única questão eu faria inteira. Tentei levar adiante o meu meio/um sexto projeto, mas fracassei. Fellini filmou seu glorioso “Oito e meio”, e naquela manhã eu fiz o meu “Cinco e meio”, ainda que ao contrário e sem ser exibido em salas de cinema mundo a fora, sem genialidade alguma.
Bateu o sinal, e aqueles que não tinham entregado suas provas foram até a mesa do professor entregá-las. Pediu para que esperássemos um pouco antes de sairmos porta afora, o que fizemos. Ele se sentou, acendeu um cigarro, deu um trago profundo, e começou a dar uma olhada por cima dos papéis que certificavam o como nossa geração era por demais ignorante, burra mesmo. Olhou, olhou, e depois de uns três minutos de tensão, disse em alto e bom som:
- Praticamente todas as provas são iguais, com exceção de umas duas entre as quarenta que estão aqui na minha mesa. Lastimosas e erradas. Espero que algo de bom aconteça nas vidas de vocês, mas temo que isso não aconteça. Na verdade, tanto faz. Só queria que vocês soubessem que todos foram aprovados. Podem ficar com a cabeça tranqüila e ir embora para suas casas. Não precisam se preocupar mais. Bom final de ano.
Não consegui descolar a bunda da cadeira naquele momento. Na verdade, fiquei sentado até o último aluno ir embora, até ficar completamente só naquela sala de aula. Fiquei observando meus colegas de classe, os futuros homens e mulheres que dali a alguns anos seriam senhores de si mesmos, com seus trabalhos e filhos. Pensei naquele homem que tentou ensinar algo de diferente para nós, e não conseguimos ou não quisemos responder à altura. Fiquei possesso de raiva, puto da vida. Com a própria vida e com todo o resto que vem junto dela, e não deixei de pensar naquele fato durante uns bons meses. Na verdade, penso nisso até hoje. Penso às vezes sobre os possíveis rumos tomados por aqueles adolescentes, meus colegas e amigos de outros tempos, minha geração mesmo, que na época povoavam meu universo. Nas paredes da sala de aula, que descascavam a olhos nus. Nas janelas quebradas, no chão de cimento rachado pelo uso do tempo e dos garotos e garotas que passavam dias tediosos sem aprender absolutamente nada daquele mundo tão alheio às suas próprias vidas, numa escola pública no final do século vinte.
E me pego pensando também o que terá acontecido com aquele homem que, naquela manhã, me fez sentir como o mais frágil e ridículo dos homens, e que de alguma forma estranha me mostrou a imensidão de minha própria pequenez perante a maravilha que o mundo pode vir a ser. Mostrou-me o chão e, como diz o provérbio, “dele ninguém passa”. Quiçá, tal como na física.

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